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quinta-feira, dezembro 02, 2010

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A  PORNOGRAFIA
MORALISTA
Segundo João Ubaldo Ribeiro
Gabriel Perissé
  
       A casa dos budas ditosos (Editora Objetiva, 163 páginas), de João Ubaldo Ribeiro, está entre os livros mais vendidos dos últimos meses. Talvez muitos o leiam por se tratar da suposta transcrição do depoimento em fita de uma suposta senhora de 68 anos que conta, com detalhes, sua vida sexual obsessiva, ilimitada, incestuosa, da qual tio, irmão, professores, amigos e desconhecidos, homens e mulheres, padres, freiras, jovens e velhos participaram. Uma orgia contínua, desenfreada, inverossímil. São leitores interessados talvez em cenas picantes e vocabulário obsceno. São leitores que (há gosto para tudo) gostam de se chocar, como o próprio João Ubaldo: “confesso que fico chocado com essa senhora provecta do livro”. Talvez outros tantos o leiam por motivos mais elevados. Querem acompanhar a trajetória de um autor que escreve bem — e de fato o livro também está muito bem escrito. Trata-se de um livro pornográfico no sentido mais puro da palavra. Escrito com classe. Com fundamento. Com profissionalismo. Com até um certo desprazer, sinal de um objetivo acima de qualquer suspeita: produzir uma obra que quer ser produzida e utiliza o escriba como veículo de sua realização. O livro pode chocar, sim, mas não tanto pela pornografia em si, embora seja pesada. Um outro tipo de leitor ficará chocado com a pornografia moralista da personagem. Uma revelação psicológica muito sutil, que João Ubaldo Ribeiro faz nas entrelinhas, sem alarde, e que retira a obra do catálogo do erotismo barato para incluí-la no da filosofia. O nosso hábito de sussurrar — “moralistas”, “dogmáticos”, “intolerantes” — ao ouvir os que pregam contra determinados comportamentos sexuais nos impede de ver o moralismo dos que fazem do sexo um deus a quem devemos entregar e sacrificar tudo: tempo, dinheiro, consciência, compromissos, tudo. A luxúria é, na verdade, extremamente dogmática e intolerante. Os 10 mandamentos da luxúria se resumem num só: gozai com o próximo, e com o próximo, e com o próximo... Ao longo do seu relato, a personagem vai como que enlouquecendo, e teorizando, palestrando, pontificando, criando verdadeiros dogmas, agredindo quem considera atrasado e ignorante. O atrasado e o ignorante merecem o inferno da virtude, do tédio. Mas, enquanto houver leitura, a narradora-protagonista ainda tentará convertê-los ao fundamentalismo sexual que a obseda. A vida é sexo. O problema é sexo. A solução é sexo. Mais ainda, ela deseja libertar as mulheres de um falso e inibido feminismo, e excitá-las, e abrir-lhes o horizonte da absoluta sexualidade: “quero [com esse texto] provocar muitas trepadas, quero que maridos, namorados e pais assustados as proíbam de ler, quero que haja gente com vergonha de ler em público ou mesmo pedir na livraria”. Dessa personagem-autora com intenções tão nobres só sabemos as iniciais, C.L.B., e que sempre teve dinheiro e que tinha... pavor de ter filhos. Mais tarde descobriu ser estéril. Ou será que a esterilidade, no seu caso, era uma doença provocada pelo amor reprimido? De qualquer forma, sente-se superior a todos, física, social e intelectualmente. E para provar que pornografia não é sinônimo de baixaria cultural, cita, com evidente lascívia literária, Shakespeare, Robert Graves, Freud, Lacan, Dante, Sartre. Cita-os e os julga com uma sem-cerimônia total. À medida que conta sua história, aperfeiçoa sua filosofia, multiplica axiomas. Um dos seus dogmas: “Todo homem é veado, em maior ou menor grau, e toda mulher é lésbica, em maior ou menor grau.” Um dos seus lamentos: “As pessoas envolvem o sexo em tanta merda — mesquinharias, ciúmes, despeitos, inseguranças, disse-me-disse, suspeitas, afirmações de ego, tanta, tanta merda...” Um dos seus anátemas: “[Os] chamados héteros puros — espécie esquisitíssima, quanto mais eu penso, mais eu acho que não existem, são unicórnios.” Uma de suas teorias arbitrárias: “Câncer é a doença do reprimido, da libido encarcerada, da falsidade extrema em relação à própria natureza.” Uma de suas frases intolerantes: “Acho burro ou mentiroso quem se escandaliza com eu ter comido meu irmão e meu tio, para não falar em primos, cunhados e quejandos.” A pornografia moralista quer punir a hipocrisia do passado, calcada num puritanismo de fachada, mas sobretudo a hipocrisia do presente, camuflada pela libertinagem de fachada. Uma de suas teses mais politicamente incorretas é que não se deve usar camisinha: é anti-natural. Como anti-naturais, em outro sentido, são a heterossexualidade e a fidelidade conjugal. Na verdade, a pornografia moralista vê e procura apenas o seu orgasmo (o que é totalmente lógico). A redução epistemológica de tudo ao sexo chega, enfim, à formulação perfeita: “a vida é foder, em última análise”. O depoimento pornográfico evolui para uma apologia e até para uma teologia sexual: “quem peca é aquele que não faz o que foi criado para fazer”. Sim, a narradora não pecou contra a luxúria. Encarnou a Luxúria. Cumpriu sua missão.  
    [ Gabriel Perissé  ,Doutor em Literatura Brasileira (USP) ]
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2 comentários:

  1. Li a Casa dos Budas Ditosos, e concordo plenamente com o Prof. Gabriel Perissé.Uma resenha de fato excelente,
    Lucia C. Domingues-RO

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  2. Li a Casados Budas Ditosos e não sei se concordo com o autor do comentário anterior, o que me faz pensar melhor sobre a excelência da resenha. Antes mesmo de decidir continuar a escrever, decidi que vou ser Anónimo, não de nome, de facto, não vou acrescentar a minha opinião. Não deixo no entanto da procurar...
    Quando li o livro sei que fiquei muito agradado com a qualidade da prosa, sem que isso possa ser mais especificado que apontar "o prazer intelectual" de sentir que as frases estão de molde a permitir não pensar em mais nada a não ser, ouvir a voz da narradora contando uma história envolvente.
    Quanto à classificação do livro como erótico... Embora não ofereça contestação, pois está lá tudo o necessário para essa mesma classificação, surpreendo-me a pensar que é mais importante o que não é erótico. Isso leva a pensar, não será por esse mais que o livro deve ser avaliado?
    Já li vários clássicos do erotismo, vindos das mais variadas latitudes, os melhores eróticos são aqueles que criam o suspense e deixam que o sexo lateje no sexo, falando com essa pulsão básica. Desse modo, o que está a acontecer na acção narrada, consigo-me imaginar a acometer ou a sentir de forma "presencial", com tesão, vamos lá, tensão erótica, pelo menos. Do mesmo modo que num livro de aventuras quase sentimos a adrenalina do personagem (vivendo a nossa), identificamo-nos, essa uma das regras, um protocolo da leitura. Se no livro em apreço isso fica secundário, talvez seja de pensar outro tipo de classificação. No caso, necessariamente, mais abrangente. Eu diria tratar-se duma narrativa, uma ficção, boa literatura! Não me preocuparia com aquilo que achei secundário, a pornografia.
    Admitindo que a leitura desta opinião anónima possa levar alguém a querer aferir uma opinião pessoal, vou enviá-la.
    Fico triste de não ser Anónimo de facto, fico de nome :)
    Anónimo

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