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quinta-feira, março 10, 2011

SOMBRAS DA ROMÃNZEIRA - TARIQ ALI

Helena Sut

“O bispo e o cético ficaram por um instante parados, encarando-se. Eles um dia pertenceram à mesma civilização que desapareceu, mas o universo de cada um tinha sido separado por um mar invisível.”

Ler um livro do Quinteto Islâmico de Tariq Ali exige dedicação exclusiva. Um ritual delicado de preparação, de limpeza de todos os preconceitos e leituras superficiais, para embarcar rumo aos  séculos com o pensamento arremessado nas ondas da civilização islâmica. Não há como não se envolver e aprender a história alinhavada com a envolvente ficção do escritor paquistanês.

Sombras da romãnzeira é a projeção silenciosa dos séculos em que os muçulmanos dominaram o sul da Espanha, região conhecida por Andaluz, e semearam a sua cultura deixando marcas indeléveis na terra.


Logo no prólogo, somos aquecidos com a grande fogueira de livros escritos em árabe, comandada pelo cardeal Ximenes de Cisneros, confessor da rainha Isabel, a Católica, em dezembro de 1499, representando a quebra do acordo de rendição firmado em 1492 que assegurava a liberdade de culto para a maioria muçulmana. Numa única noite, tratados de teologia, manuais de medicina e astronomia, livros de poesia,  exemplares do Alcorão queimam junto aos séculos de conhecimento.


“Sobre o borralho de uma tragédia, espreita a sombra de outra.”


A aldeia de Al-Hudail, nas proximidades de Granada, é o cenário para o encontro dos fortes personagens e a reflexão aprofundada dos medos, das conversões, do ceticismo e da resistência. A fidelidade ao islamismo demonstrada pelo patriaraca Omar bin Abdala, seus filhos e pelos aldeões; a conversão de alguns parentes próximos estimuladas pelo cardeal Miguel, tio de Omar, muçulmano convertido e bispo de Córdoba, e o ceticismo do místico al-Zindiq são confrontados num momento histórico único que culminou com a expulsão dos muçulmanos de Granada.


Ximenes de Cisneros era o o “primeiro arcebispo de Espanha a ser realmente celibatário”, “um padre que vivia de acordo com o que pregava” e, entretanto, foi o instrumento vital para as arbitrariedades cometidas pela Inquisição contra os muçulmanos e judeus em Granada, porque ele sabia o poder das idéias e as consequências da fogueira de livros árabes.

"Para que serve a vida sem nossos livros de conhecimento?"

As figuras esculpidas dos mouros e cristãos no tabuleiro de xadrez do pequeno Yazid bin Omar é a metáfora perfeita para o período sangrento e cruel que seguiu a instauração da Inquisição Espanhola e a intolerância religiosa que culminou no crime contra séculos de cultura e arte. Mas Tariq Ali não é maniqueísta e apresenta as tantas perspectivas sem conter as culpas, como na fala do cético al-Zindiq: “Nós achávamos que os velhos tempos podiam acabar em toda parte, mas nunca em Garnata. Tínhamos certeza de que o reino do islã sobreviveria em al-Andaluz, mas subestimamos nossa capacidade de autodestruição. Aqueles dias nunca mais voltarão, sabe por quê? Porque os defensores da fé brigavam entre si, se matavam e mostraram que não conseguiam se unir contra os cristãos. Até ser tarde demais.”


A coragem do filho Zuair bin Omar e o seu amadurecimento não são suficientes para poupar sua família da trajédia. As paixões quando carregam estandartes religiosos jamais se aproximam da razão e sempre culminam em atos brutais que sangram a humanidade e jamais serão perdoados.


A morte de mulheres e crianças é justificada pelo temor do capitão exteriorizado para os soldados após a chacina na aldeia de Al-Hudail: “Eu não disse hoje cedo que o ódio dos sobreviventes é o veneno que pode nos destruir?”


Sombra da romãnzeira é um romance imprescindível para conhecer a história islâmica e da reconquista cristã durante o reinado dos reis católicos de Espanha, compreender o presente tão propagado nos veículos midiáticos e criar perspectivas para o futuro com a valorização do séculos de cultura islãmica e de sua influência no ocidente.

[Helena Sut]

domingo, fevereiro 06, 2011

Contra o esquecimento!

Antonio Ozaí da Silva*
* Os eventos tendem a perder força na medida em que o tempo passa. Os vínculos das novas gerações com o passado histórico de uma nação fragilizam-se e inclina-se à formalização, através do registro escrito, cinematográfico, etc. A compreensão do real significado dos acontecimentos que marcaram épocas e envolveram seres humanos reais, de carne e osso, tem uma dimensão que vai além do fator racional. É diferente conhecer a história pelos livros, relatos, etc. do reconhecer-se enquanto sujeito atuante no cerne dos fatos transformadores de uma dada época. É muito diferente o “estudar a História” do “fazer a História”.
Quanto mais presente a dimensão de pertencimento a um determinado tempo histórico, maior o comprometimento com o resgate e permanência da memória. Não obstante, o tempo não pára e com o passar do tempo a memória dos vivos é suplantada. O acesso das novas gerações à memória histórica é, então, possibilitado pela atividade intelectual dos escritores e pesquisadores interessados ou de alguma forma envolvidos com a reflexão sobre os eventos que constituem a História. A escrita é uma das formas privilegiadas de propiciar às gerações vindouras os vínculos necessários com o passado, ainda que tendam à formalização e frieza inerentes à racionalização dos fatos históricos. Mesmo assim, cumpre uma função importante na luta contra o esquecimento.
“Quem controla o passado controla o futuro. Quem controla o presente controla o passado”, afirmou George Orwell em 1984. A memória é, portanto, uma das questões política fundamentais. Não é por acaso que todos os governos, ditaduras ou democracias, intentam controlar as mentes através de procedimentos restritivos, seletivos e manipulatórios.
Por outro lado, a democracia favorece a pluralidade e mesmo a competição entre as versões dos fatos propagadas pelos setores interessados. Os fatos não são apenas “fatos puros” e “objetivos”, mas também interpretações motivadas por interesses políticos e ideológicos. Há também o interesse de passar a borracha sobre o passado, de controlá-lo. Não é casual que os herdeiros dos ditadores, e aqueles cujo passado os condenam, se esforcem ao máximo pelo esquecimento. Eles almejam enterrar as lembranças e os fantasmas que, talvez, assombram os seus sonhos – embora teimem em construir argumentos racionais para justificar o injustificável. Se depender deles, o passado jaz nos túmulos sombrios das suas vítimas.
Desarquivando a ditadura: memória e justiça no Brasil, organizado por Cecília Macdowell Santos, Edson Teles e Janaína de Almeida Teles, rompe com o consenso que caracterizou a transição política brasileira, da ditadura militar-civil à democratização, e negou o caráter público à memória referente à repressão perpetrada pelos órgãos e indivíduos vinculados ao Estado brasileiro e que vitimaram muitos dos que escolherem a luta contra o autoritarismo. Há um esforço político em restringir esta memória aos indivíduos diretamente envolvidos e seus familiares. A herança autoritária, por sua vez, sobrevive e se metamorfoseia nas instituições democráticas.
Diante disto, algumas questões colocadas pelos organizadores do livro expressam bem o fio de Ariadne que norteiam as reflexões dos artigos publicados:
“Qual o papel hoje desempenhado pela memória dos anos da ditadura e pela justiça? É possível esquecermos as violações de direitos humanos? Ou o inesquecível da tortura continuará a habitar as cenas públicas e privadas da vida social? Qual a contribuição da justiça para a compreensão e a reparação das atrocidades cometidas no passado? Qual a possibilidade de imaginarmos uma democracia com a livre construção da memória pública?” (p.13-14).
Num diálogo entre o passado e o presente, os autores desta obra interpretam os eventos históricos, práticas e ideologias dos grupos de esquerda, militares e instituições do Estado no período da ditadura militar-civil. Na primeira parte, “Construindo memórias e histórias de resistências”, Murilo Leal Pereira Neto reconstrói as biografias políticas de Sidney Fix Marques dos Santos, Olavo Hansen e Paulo Roberto Pinto (Jeremias), militantes trotskistas do Partido Operário Revolucionário (POR).
Ele mostra que a repressão política é inerente à organização do Estado, independente da forma de governo (ditadura ou democracia). “Devemos lembrar que os três jovens padeceram da repressão em pleno período democrático, de 1961 a 1964, por distribuírem panfletos, fazerem pichações ou liderarem greves”, salienta (p. 44). Não esquecer é fundamental para pensarmos a democracia, seus limites e a necessidade de aprofundamento. Como frisa Neto, “recordar e narrar significa ampliar os horizontes no presente com as causas ganhas e perdidas do passado” (p.26).
No segundo capítulo, “Memória e cidadania: as mortes de V. Herzog, Manuel F. Filho e José F. de Almeida”, Mário Sérgio de Moraes analisa a conjuntura política e social, os fatores que levaram ao assassinato destes militantes e a repercussão nos meios de comunicação e na sociedade. “A palavra cidadania, tantas vezes referida como sinônimo de respeito público, não foi encontrada para definir a situação do operário”, ressalta o autor (p.61). Com efeito, o conceito de cidadania é interpretado segundo critérios de classe social. Assim, explica-se as reações diante da morte de ambos.
Everaldo de Oliveira Andrade, no capítulo 3, “A liberdade nasce da luta: o surgimento da OSI na crise da ditadura”, analisa o contexto da formação da Organização Socialista Internacionalista (OSI), também conhecida como “Libelu” (Liberdade e Luta), em outubro de 1976. Trata-se de uma contribuição importante para a história do marxismo no Brasil, em especial a vertente trotskista.
No capítulo 4, “Servir ao povo de todo o coração”: mulheres militantes e mulheres operárias no ABC BA década de 1970”, Antonio Luigi Negro examina a experiência das militantes da Ala Vermelha que, no processo de proletarização, envidaram esforços para se integrarem ao cotidiano das trabalhadoras metalúrgicas.
No quinto, Flamarion Maués analisa o processo de produção e distribuição, impacto, repercussão e papel político do livro “Tortura: A História da Repressão Política”, escrito pelo jornalista Antonio Carlos Fon e publicado em julho de 1979 pela Editora Global (São Paulo). No seguinte, Tatiana Moreira Campos Paiva aborda um tema complexo: a experiência dos filhos de exilados políticos brasileiros. E, no último capítulo da primeira parte, Janaína de Almeida Teles apresenta a reflexão sobre a luta dos familiares de mortos e desaparecidos políticos, entre o luto e a melancolia. É importante destacar o significado traumático e doloroso imposto pela prática repressiva que gerou o desaparecimento e criou “um situação sem fim, perpetuando a tortura que é viver a ausência dos corpos e de informações dos parentes e pessoas queridas” (p.154).
Na Parte II, os autores analisam a “Repressão, Ideologia Militar e Instituições do Estado”. No capítulo 8, “Tortura e ideologia: os militares brasileiros e a doutrina da guerre révolutionnaire”, João Roberto Martins Filho examina a influência da doutrina militar francesa sobre o Exército brasileiro. No seguinte, Anthony W. Pereira analisa as nuances e papéis desempenhados pelos sistemas judiciais e a repressão política no Brasil, Chile e Argentina. O autor levanta questões importantes para a compreensão das relações complexas entre sistema judiciário, Estado e repressão política.
No capítulo 10, Kathia Martin-Chenut analisa “O sistema penal de exceção em face do direito internacional dos direitos humanos”. No seguinte, Samantha Viz Quadrat, avalia a Operação Condor e o impacto das denúncias nos meios judiciais. Ela discute, ainda, como estes fatos repercutiram no Brasil. Já no capítulo 12, Silvio Luiz Gonçalves Pereira examina “As comissões Parlamentares de inquérito na Câmara dos Deputados durante a crise político- institucional brasileira (1963-1968)”. No capítulo 13, Maurício Maia faz uma reflexão sobre “as práticas cotidianas daqueles que se utilizam do segredo como ferramenta de trabalho no trato da coisa pública” (p.287). Seu ponto de partida é “a paradoxal experiência brasileira, em que graves episódios de violação dos direitos humanos são acobertados pelo manto do silêncio, mesmo em períodos de normalidade democrática” (id.). No último capítulo, “O passado recente em disputa: memória, historiografia e as censuras da ditadura militar”, Douglas Attila Marcelino “aborda as disputas de memória que envolvem o estudo da censura exercida durante a ditadura, procurando redimensionar a atuação do Serviço de Censura de Diversões Públicas e fazer uma análise crítica do conhecimento histórico produzido sobre a temática” (p.21).
São estes os temas expostos e analisados pelos autores no primeiro volume de Desarquivando a ditadura: memória e justiça no Brasil. Como salientam os organizadores, o objetivo é “apresentar um espectro de reflexões críticas e multidisciplinares sobre os diversos aspectos sociais, culturais, políticos e jurídicos da constituição da memória da ditadura, da justiça e da democracia no Brasil” (id.).
Desarquivando a ditadura: memória e justiça no Brasil se insere nos esforços para resgatar a memória da geração que lutou contra a ditadura militar e civil implantada no Brasil nos idos de 1964. O esquecimento é a segunda morte. Relembrar os fatos históricos, nossos mortos e suas lutas são formas de mantê-los “vivos”. Não esquecer é também uma maneira de se exigir justiça e relembrar às novas gerações que o passado não jaz em sepultura impenetrável e protegida. O passado não está sepultado definitivamente e, se descuidarmos, pode ressurgir. Nem mesmo a democracia é garantia suficiente contra o retorno dos ditadores. O regime democrático pode transmudar-se no seu oposto.
Esta obra cumpre um papel importante ao oferecer aos leitores vinculados à geração da luta contra a ditadura militar-civil (1964-1985) a possibilidade de refletir sobre a herança que se mantém atual, reforçando a luta pelo não esquecimento e pela justiça. Por outro lado, possibilita à geração pós-redemocratização, o contato com o passado que forjou o tempo presente e, certamente, influiu sobre as suas vidas – ainda que nem tenham consciência do significado e importância do período antecedente.
Desarquivando a ditadura: memória e justiça no Brasil é, portanto, um livro essencial para compreender o passado e o presente político-social. Pois, como afirmam os organizadores: “A transformação do presente depende do conhecimento do passado e do reconhecimento de como esta herança se manifesta e é avaliada nos dias atuais” (p.13).

* RESENHA: SANTOS, Cecília Macdowell; TELES, Edson; TELES, Janaína de Almeida. (Orgs.) Desarquivando a ditadura: memória e justiça no Brasil, volume I. São Paulo: Aderaldo & Rothschild Editores, 2009 (340 p.) Publicada originalmente na REVISTA ESPAÇO ACADÊMICO, nº 117, fevereiro de 2011.

*Professor do Departamento de Ciências Sociais, Universidade Estadual de Maringá (UEM); editor da Revista Espaço Acadêmico, Acta Scientiarum. Human and Social Sciences e Revista Urutágua

quarta-feira, dezembro 29, 2010

A vida por um fio e por inteiro



Elias Knobel, cardiologista de 61 anos de existência, 33 deles devotados à liderança do Centro de Terapia Intensiva do Hospital Israelita Albert Einstein, instituição que ele contribuiu para criar, inaugurada em 1972, passa boa parte de seus dias no interior de uma UTI, onde mais que em qualquer lugar do mundo é possível testemunhar a guerra contra a morte, pela preservação da vida. É neste ambiente que se desenrolam as várias histórias presenciadas e narradas por este médico, autor de mais de 50 livros técnicos, entre eles Condutas do Paciente Grave, um dos mais vendidos na área médica em todo o país. Em seu livro mais recente, o único direcionado a um leitor comum, ele traduz os eventos mais expressivos de seus anos de combate incessante a favor da vida, neste meio onde os enfermos se encontram presos à existência por um fio muito tênue.
Em A vida por um fio e por inteiro Knobel tece meditações sobre a complexa interação entre o médico e seus pacientes, de uma forma fluente, ágil, propiciando uma leitura de fácil digestão. Além disso, ele não sobrecarrega o público leigo com um discurso específico e árduo; pelo contrário, o autor opta por um estilo didático e saboroso.
Ele discorre sobre o estado emocional dos médicos que circulam por este meio, no qual o mínimo lapso, a menor adversidade pode provocar a iminência da morte; o cardiologista demonstra o quanto estes profissionais são abalados em sua esfera psíquica; conforme afirma Elias, é impossível que alguém permaneça impassível diante dos quadros que se desdobram em cada UTI.
Knobel comprova nesta obra, de forma concisa e exata, do ponto de vista de um especialista no campo sobre o qual discorre, que realmente conquistou a experiência necessária para conviver neste ambiente, com esta modalidade profissional, não somente em seu ângulo acadêmico, mas também e principalmente no quesito existencial.
Conforme o leitor avança nesta leitura, percebe que neste contexto é impossível manter as aparências, permanecer atrelado às máscaras sociais. No ambiente hospitalar eventos inusitados se desenrolam, praticamente provando que a realidade imita a arte, ou vice-versa.
O cardiologista é tão apaixonado por sua profissão que, apesar de estar posicionado como vice-presidente do hospital há dois anos, mantém suas idas cotidianas à UTI, na qual ele tem sob sua supervisão cerca de 400 funcionários, e os pacientes que ocupam 40 leitos na intensiva, 41 na semi-intensiva, 22 na coronária.
Além dos casos fantásticos que se desenrolam nos bastidores da UTI, o leitor também conhecerá um pouco melhor o próprio autor, vivenciará os obstáculos, as provocações do destino, as aquisições do profissional e do ser humano. Terá igualmente a oportunidade de compartilhar de seu ponto de vista sobre os mecanismos que regem atualmente a esfera da saúde, não só no Brasil, mas em todo o mundo.
Fontes:
http://www.knobel.com.br/site/235/
http://www.glorinhacohen.com.br/subitemMenu.asp?idMateria=4653

quinta-feira, dezembro 02, 2010

reprodução 
Reprodução...................

A  PORNOGRAFIA
MORALISTA
Segundo João Ubaldo Ribeiro
Gabriel Perissé
  
       A casa dos budas ditosos (Editora Objetiva, 163 páginas), de João Ubaldo Ribeiro, está entre os livros mais vendidos dos últimos meses. Talvez muitos o leiam por se tratar da suposta transcrição do depoimento em fita de uma suposta senhora de 68 anos que conta, com detalhes, sua vida sexual obsessiva, ilimitada, incestuosa, da qual tio, irmão, professores, amigos e desconhecidos, homens e mulheres, padres, freiras, jovens e velhos participaram. Uma orgia contínua, desenfreada, inverossímil. São leitores interessados talvez em cenas picantes e vocabulário obsceno. São leitores que (há gosto para tudo) gostam de se chocar, como o próprio João Ubaldo: “confesso que fico chocado com essa senhora provecta do livro”. Talvez outros tantos o leiam por motivos mais elevados. Querem acompanhar a trajetória de um autor que escreve bem — e de fato o livro também está muito bem escrito. Trata-se de um livro pornográfico no sentido mais puro da palavra. Escrito com classe. Com fundamento. Com profissionalismo. Com até um certo desprazer, sinal de um objetivo acima de qualquer suspeita: produzir uma obra que quer ser produzida e utiliza o escriba como veículo de sua realização. O livro pode chocar, sim, mas não tanto pela pornografia em si, embora seja pesada. Um outro tipo de leitor ficará chocado com a pornografia moralista da personagem. Uma revelação psicológica muito sutil, que João Ubaldo Ribeiro faz nas entrelinhas, sem alarde, e que retira a obra do catálogo do erotismo barato para incluí-la no da filosofia. O nosso hábito de sussurrar — “moralistas”, “dogmáticos”, “intolerantes” — ao ouvir os que pregam contra determinados comportamentos sexuais nos impede de ver o moralismo dos que fazem do sexo um deus a quem devemos entregar e sacrificar tudo: tempo, dinheiro, consciência, compromissos, tudo. A luxúria é, na verdade, extremamente dogmática e intolerante. Os 10 mandamentos da luxúria se resumem num só: gozai com o próximo, e com o próximo, e com o próximo... Ao longo do seu relato, a personagem vai como que enlouquecendo, e teorizando, palestrando, pontificando, criando verdadeiros dogmas, agredindo quem considera atrasado e ignorante. O atrasado e o ignorante merecem o inferno da virtude, do tédio. Mas, enquanto houver leitura, a narradora-protagonista ainda tentará convertê-los ao fundamentalismo sexual que a obseda. A vida é sexo. O problema é sexo. A solução é sexo. Mais ainda, ela deseja libertar as mulheres de um falso e inibido feminismo, e excitá-las, e abrir-lhes o horizonte da absoluta sexualidade: “quero [com esse texto] provocar muitas trepadas, quero que maridos, namorados e pais assustados as proíbam de ler, quero que haja gente com vergonha de ler em público ou mesmo pedir na livraria”. Dessa personagem-autora com intenções tão nobres só sabemos as iniciais, C.L.B., e que sempre teve dinheiro e que tinha... pavor de ter filhos. Mais tarde descobriu ser estéril. Ou será que a esterilidade, no seu caso, era uma doença provocada pelo amor reprimido? De qualquer forma, sente-se superior a todos, física, social e intelectualmente. E para provar que pornografia não é sinônimo de baixaria cultural, cita, com evidente lascívia literária, Shakespeare, Robert Graves, Freud, Lacan, Dante, Sartre. Cita-os e os julga com uma sem-cerimônia total. À medida que conta sua história, aperfeiçoa sua filosofia, multiplica axiomas. Um dos seus dogmas: “Todo homem é veado, em maior ou menor grau, e toda mulher é lésbica, em maior ou menor grau.” Um dos seus lamentos: “As pessoas envolvem o sexo em tanta merda — mesquinharias, ciúmes, despeitos, inseguranças, disse-me-disse, suspeitas, afirmações de ego, tanta, tanta merda...” Um dos seus anátemas: “[Os] chamados héteros puros — espécie esquisitíssima, quanto mais eu penso, mais eu acho que não existem, são unicórnios.” Uma de suas teorias arbitrárias: “Câncer é a doença do reprimido, da libido encarcerada, da falsidade extrema em relação à própria natureza.” Uma de suas frases intolerantes: “Acho burro ou mentiroso quem se escandaliza com eu ter comido meu irmão e meu tio, para não falar em primos, cunhados e quejandos.” A pornografia moralista quer punir a hipocrisia do passado, calcada num puritanismo de fachada, mas sobretudo a hipocrisia do presente, camuflada pela libertinagem de fachada. Uma de suas teses mais politicamente incorretas é que não se deve usar camisinha: é anti-natural. Como anti-naturais, em outro sentido, são a heterossexualidade e a fidelidade conjugal. Na verdade, a pornografia moralista vê e procura apenas o seu orgasmo (o que é totalmente lógico). A redução epistemológica de tudo ao sexo chega, enfim, à formulação perfeita: “a vida é foder, em última análise”. O depoimento pornográfico evolui para uma apologia e até para uma teologia sexual: “quem peca é aquele que não faz o que foi criado para fazer”. Sim, a narradora não pecou contra a luxúria. Encarnou a Luxúria. Cumpriu sua missão.  
    [ Gabriel Perissé  ,Doutor em Literatura Brasileira (USP) ]
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segunda-feira, outubro 04, 2010

Funes, o Memorioso

Jorge Luis Borges
Tradução de Marco Antonio Franciotti
 
Recordo-o (não tenho o direito de pronunciar esse verbo sagrado, apenas um homem na terra teve o direito e tal homem está morto) com uma obscura passiflórea na mão, vendo-a como ninguém jamais a vira, ainda que a contemplasse do crepúsculo do dia até o da noite, uma vida inteira. Recordo-o, o rosto taciturno e indianizado e singularmente remoto, por trás do cigarro. Recordo (creio) suas mãos delicadas de trançador. Recordo próximo dessas mãos um mate, com as armas da Banda Oriental, recordo na janela da casa uma esteira amarela, com uma vaga paisagem lacustre. Recordo claramente a sua voz; a voz pausada, ressentida e nasal de orillero antigo, sem os assobios italianos de agora. Mais de três vezes não o vi; a última, em 1887... Parece-me muito feliz o projeto de que todos aqueles que o conheceram escrevam sobre ele; meu testemunho será por certo o mais breve e sem dúvida o mais pobre, porém não o menos imparcial do volume que vós editareis. A minha deplorável condição de argentino impedir-me-á de incorrer no ditirambo - gênero obrigatório no Uruguai; quando o tema é um uruguaio. Literato, cajetilla, porteño. Funes não disse essas palavras injuriosas, mas de um modo suficiente me consta que eu representava para ele tais desventuras. Pedro Leandro Ipuche escreveu que Funes era um precursor dos super-homens; "Um Zaratustra cimarrón e vernáculo"; não o discuto, mas não se deve esquecer que era também natural de Fray Bentos, com certas limitações incuráveis.
A minha primeira lembrança de Funes é muito clara. Vejo-o em um entardecer de Março ou Fevereiro do ano de 1884. Meu pai, nesse ano, levara-me a veranear em Fray Bentos. Voltava com meu primo Bernardo Haedo da estância de San Francisco. Voltávamos cantando, a cavalo, e essa não era a única circunstância da minha felicidade. Após um dia abafado, uma enorme tempestade cor cinza escura havia escondido o céu. Alentava-me o vento Sul, já enlouqueciam-se as árvores; eu tinha o temor (a esperança) de que nos surpreenderia em um descampado a água elemental. Apostamos uma espécie de corrida com a tempestade. Entramos em um desfiladeiro que se aprofundava entre duas veredas altíssimas de tijolo. Escurecera repentinamente; ouvi passos rápidos e quase secretos no alto; levantei os olhos e vi um rapaz que corria pela vereda estreita e esburacada como que por uma parede estreita e esburacada. Recordo a bombacha, as alpargatas, recordo o cigarro no rosto duro, contra a densa nuvem já sem limites. Bernardo gritou-lhe imprevisivelmente: Que horas são, Ireneo? Sem consultar o céu, sem deter-se, o outro respondeu: Faltam quatro minutos para as oito, jovem Bernardo Juan Francisco. A voz era aguda, zombeteira.
Sou tão distraído que o diálogo a que acabo de me referir não teria chamado a minha atenção se não o tivesse enfatizado o meu primo, a quem estimulavam (creio) certo orgulho local, e o desejo de mostrar-se indiferente à réplica tripartite do outro.
Disse-me que o rapaz do desfiladeiro era um tal Ireneo Funes, conhecido por algumas peculiaridades como a de não se dar com ninguém e a de saber sempre a hora, como um relógio. Complementou dizendo que era filho de uma passadeira do povo, Maria Clementina Funes, e que alguns diziam que seu pai era um médico de saladeiro, um inglês O’Connor, e outros um domador ou rastreador do departamento de Salto. Vivia com a sua mãe, na curva da quinta dos Laureles.
Nos anos de 1885 e 1886 veraneamos na cidade de Montevideo. Em 1887 voltei a Fray Bentos. Perguntei, como é natural, por todos os conhecidos e, finalmente, pelo "cronométrico Funes". Responderam-me que um redomão o havia derrubado na estância de San Francisco, e que havia se tornado paralítico, sem esperança. Recordo a sensação de incômoda magia que a notícia despertou-me: a única vez que eu o vi, vínhamos a cavalo de San Francisco e ele andava em um lugar alto; o fato, na boca do meu primo Bernardo, tinha muito de sonho elaborado com elementos anteriores. Disseram-me que não se movia da cama, os olhos repousados na figueira do fundo ou em uma teia de aranha. Ao entardecer, permitia que o levassem para perto da janela. Levava a arrogância ao ponto de simular que era benéfico o golpe que o havia fulminado... Duas vezes o vi atrás da relha, que toscamente enfatizava a sua condição de eterno prisioneiro; uma, imóvel, com os olhos cerrados; outra, imóvel também, absorto na contemplação de um aromático galho de santonina.
Não sem um certo orgulho havia iniciado naquele tempo o estudo metódico do latim. A minha mala incluía o De viris illustribus de Lhamond, o Thesaurus de Quicherat, os comentários de Júlio César e um volume ímpar da Naturalis historia de Plínio, que excedia (e continua excedendo) as minhas modestas virtudes de latinista. Tudo se propaga em um povoado; Ireneo, em seu rancho das orillas, não tardou em enteirar-se da chegada desses livros anômalos. Dirigiu-me uma carta florida e cerimoniosa, na qual recordava no encontro, desditosamente fugaz, "do dia 7 de Fevereiro de 1884", ponderava os gloriosos serviços que Don Gregorio Haedo, meu tio, falecido nesse mesmo ano, "havia prestado às duas pátrias na valorosa jornada de Ituzaingó", e me solicitava o empréstimo de qualquer dos volumes, acompanhado de um dicionário "para a boa intelecção do texto original, pois todavia ignoro o latim". Prometia devolvê-los em bom estado, quase imediatamente. A letra era perfeita, muito perfilada; a ortografia, do tipo que Andrés Bello preconizou: i por y, j por g. A princípio, suspeitei naturalmente tratar-se de uma zombaria. Meus primos asseguraram que não, que eram coisas de Ireneo. Não sabia se atribuía ao atrevimento, à ignorância ou à estupidez a idéia de que o árduo latim não requeresse mais instrumento do que um dicionário; para desencorajá-lo completamente enviei-lhe o Gradus ad parnassum de Quicherat e a obra de Plínio.
No dia 14 de Fevereiro telegrafaram-me de Buenos Aires que voltasse imediatamente, pois meu pai não estava "nada bem". Deus me perdôe; o prestígio de ser o destinatário de um telegrama urgente, o desejo de comunicar a toda Fray Bentos a contradição entre a forma negativa da notícia e o peremptório advérbio, a tentação de dramatizar a minha dor, fingindo um estoicismo viril, talvez distraíram-me de toda a possibilidade de dor. Ao fazer a mala, notei que me faltavam o Gradus e o primeiro tomo da Naturalis historia. O "Saturno" sarpava no dia seguinte, pela manhã; essa noite, depois da janta, dirigi-me à casa de Funes. Assombrou-me que a noite fora não menos pesada que o dia.
No humilde rancho, a mãe de Funes recebeu-me.
Disse-me que Ireneo estava no quarto dos fundos e que não me estranhasse encontrá-lo às escuras, pois Ireneo preferia passar as horas mortas sem acender a vela. Atrevessei o pátio de lajota, o pequeno corredor; cheguei ao segundo pátio. Havia uma parreira; a escuridão pareceu-me total. Ouvi prontamente a voz alta e zombeteira de Ireneo. Essa voz falava em latim; essa voz (que vinha das trevas) articulava com moroso deleite um discurso, ou prece, ou encantamento. Ressoavam as sílabas romanas no pátio de terra; o meu temor as tomava por indecifráveis, intermináveis; depois, no enorme diálogo dessa noite, soube que formavam o primeiro parágrafo do 24o capítulo do 7o livro da Naturalis historia. O tema desse capítulo é a memória: as últimas palavras foram ut nihil non iisdem verbis redderetur auditum.
Sem a menor mudança de voz, Ireneo disse-me o que se passara. Estava na cama, funmando. Parece-me que não vi o seu rosto até a aurora; creio lembrar-me da brasa momentânea do cigarro. O quarto exalava um vago odor de umidade. Sentei-me, repeti a estória do telegrama e da enfermidade de meu pai.
Chego, agora, ao ponto mais difícil do meu relato. Este (é bem verdade que já o sabe o leitor) não tem outro argumento senão esse diálogo de há já meio século. Não tratarei de reproduzir as suas palavras, irrecuperáveis agora. Prefiro resumir com veracidade as muitas coisas que me disse Ireneo. O estilo indireto é remoto e débil; eu sei que sacrifico a eficácia do meu relato; que os meus leitores imaginem os períodos entrecortados que me abrumaram essa noite.
Ireneo começou por enumerar, em latim e espanhol, os casos de memória prodigiosa registrados pela Naturalis historia: Ciro, rei dos persas, que sabia chamar pelo nome todos os soldados de seus exércitos; Metríadates e Eupator, que administrava a justiça dos 22 idiomas de seu império; Simónides, inventor da mnemotecnia; Metrodoro, que professava a arte de repetir com fidelidade o escutado de uma só vez. Com evidente boa fé maravilhou-se de que tais casos maravilharam. Disse-me que antes daquela tarde chuvosa em que o azulego o derrubou, ele havia sido o que são todos os cristãos; um cego, um surdo, um tolo, um desmemoriado. (Tratei de recordar-lhe a percepção exata do tempo, a sua memória de nomes próprios; não me fez caso.) Dezenove anos havia vivido como quem sonha: olhava sem ver, ouvia sem ouvir, esquecia-se de tudo, de quase tudo. Ao cair, perdeu o conhecimento; quando or ecobrou, o presente era quase intolerável de tão rico e tão nítido, e também as memórias mais antigas e mais triviais. Pouco depois averiguou que estava paralítico. Fato pouco o interessou. Pensou (sentiu) que a imobilidade era um preço mínimo. Agora a sua percepção e sua memória eram infalíveis.
Num rápido olhar, nós percebemos três taças em uma mesa; Funes, todos os brotos e cachos e frutas que se encontravam em uma parreira. Sabia as formas das nuvens austrais do amanhecer de trinta de abril de 1882 e podia compará-los na lembrança às dobras de um livro em pasta espanhola que só havia olhado uma vez e às linhas da espuma que um remo levantou no Rio Negro na véspera da ação de Quebrado. Essas lembranças não eram simples; cada imagem visual estava ligada a sensações musculares, térmicas, etc. Podia reconstruir todos os sonhos, todos os entresonhos. Duas ou três vezes havia reconstruído um dia inteiro, não havia jamais duvidado, mas cada reconstrução havia requerido um dia inteiro. Disse-me: Mais lembranças tenho eu do que todos os homens tiveram desde que o mundo é mundo. E também: Meus sonhos são como a vossa vigília. E também, até a aurora; Minha memória, senhor, é como depósito de lixo. Uma circunferência em um quadro-negro, um triângulo retângulo; um losango, são formas que podemos intuir plenamente; o mesmo se passava a Ireneo com as tempestuosas crinas de um potro, com uma ponta de gado em um coxilha, com o fogo mutante e com a cinza inumerável, com as muitas faces de um morto em um grande velório. Não sei quantas estrelas via no céu.
Essas coisas me disse; nem então nem depois coloquei-as em dúvida. Naquele tempo não havia cinematógrafos nem fonógrafos; é, no entanto, verossímil e até incrível que ninguém fizera um experimento com Funes. O cérto é que vivemos postergando todo o postergável; talvez todos saibamos pronfundamente que somos imortais e que mais cedo ou mais tarde, todo homem fará todas as coisas e saberá tudo.
A voz de Funes, vinda da escuridão, seguia falando.
Disse-me que em 1886 havia elaborado um sistema original de numeração e que em muito poucos dias havia ultrapassado vinte e quatro mil. Não o havia escrito, porque o pensado uma só vez já não podia desvanecer-lhe. Seu primeiro estímulo, creio, foi o descontentamento de que os trinta e três uruguaios requeressem dois signos e três palavras, em lugar de uma só palavra e um só signo. Aplicou logo esse desparatado princípio aos outros números. Em lugar de sete mil e treze, dizia (por exemplo) Máximo Pérez; em lugar de sete mil e catorze, A Ferrovia; outros números eram Luis Melián Lafinur, Olivar, enxofre, os rústicos, a baleia, o gás, a caldeira, Napoleão, Agustín de Vedia. Em lugar de quinhentos, dizia nove. Cada palavra tinha um signo particular, uma espécie de marca; as últimas eram muito complicadas... Eu tratei de explicar-lhe que essa rapsódia de vozes desconexas era precisamente o contrário de um sistema de numeração. Eu lhe observei que dizer 365 era dizer três centenas, seis dezenas, cinco unidades; análise que não existe nos "números". O Negro Timoteo a manta de carne. Funes não me entendeu ou não quis me entender.
Locke, no século XVII, postulou (ou reprovou) um idioma impossível no qual cada coisa individual, cada pedra, cada pássaro e cada ramo tivesse um nome próprio; Funes projetou alguma vez um idioma análogo, mas o desejou por parecer-lhe demasiado geral, demasiado ambígüo. De fato, Funes não apenas recordava cada folha de cada árvore de cada monte, mas também cada uma das vezes que a havia percebido ou imaginado. Resolveu reduzir cada uma de suas jornadas pretéritas a umas setenta mil lembranças, que definiria logo por cifras. Dissuadiram-no duas considerações: a consciência de que a tarefa era interminável, a consciência de que era inútil. Pensou que na hora da morte não havia acabo ainda de classificar todas as lembranças da infância.
Os dois projetos que foi indicado (um vocabulário infinito para a série natural dos números, um inútil catálogo mental de todas as imagens da lembrança) são insensatos, mas revelam certa balbuciante grandeza. Nos deixam vislumbrar ou inferir o vertiginoso mundo de Funes. Este, não o esqueçamos, era quase incapaz de idéias gerais, platônicas. Não apenas lhe custava compreender que o símbolo genérico cão abarcava tantos indivíduos díspares de diversos tamanhos e diversa forma; perturbava-lhe que o cão das três e catorze (visto de perfil) tivesse o mesmo nome que o cão das três e quatro (visto de frente). Sua própria face no espelho, suas próprias mãos, surpreendiam-no cada vez. Comenta Swift que o imperador de Lilliput discernia o movimento do ponteiro dos minutos; Funes discernia continuamente os avanços tranqüilos da corrupção, das cáries, da fatiga. Notava os progressos da morte, da umidade. Era o solitário e lúcido espectador de um mundo multiforme, instantâneo e quase intolerantemente preciso. Babilônia, Londres e Nova York têm preenchido com feroz esplendor a imaginação dos homens; ninguém, em suas torres populosas ou em suas avenidas urgentes, sentira o calor e a pressão de uma realidade tão infatigável como a que dia e noite convergia sobre o infeliz Ireneo, em seu pobre subúrbio sulamericano. Era-llhe muito difícil dormir. Dormir é distrair-se do mundo; Funes, de costas na cama, na sombra, figurava a si mesmo cada rachadura e cada moldura das casas distintas que o redoavam. (Repito que o menos importante das suas lembranças era mais minucioso e mais vivo que nossa percepção de um gozo físico ou de um tormento físico). Em direção ao leste, em um trecho não pavimentado, havia casas novas, desconhecidas. Funes as imaginava negras, compactas, feitas de treva homogênea; nessa direção virava o rosto para dormir. Também era seu costume imaginar-se no fundo do rio, mexido e anulado pela corrente.
Havia aprendido sem esforço o inglês, o francês, o português, o latim. Suspeito, contudo, que não era muito capaz de pensar. Pensar é esquecer diferenças, é generalizar, abstrair. No mundo abarrotado de Funes não havia senão detalhes, quase imediatos.
A receosa claridade da madrugada entrou pelo pátio de terra.
Então vi a face da voz que toda a noite havia falado. Ireneo tinha dezenove anos; havia nascido em 1868; pareceu-me tão monumental como o bronze, mais antigo que o Egito, anterior às profecias e às pirâmides. Pensei que cada uma das minhas palavras (que cada um dos meus gestos) perduraria em sua implacável memória; entorpeceu-me o temor de multiplicar trejeitos inúteis.
Ireneo Funes morreu em 1889, de uma congestão pulmonar.
 
Tradução de Marco Antonio Franciotti
(in Jorge Luis Borges: Prosa Completa, Barcelona: Ed. Bruguera, 1979, vol. 1., pgs. 477-484).

quarta-feira, setembro 01, 2010


O sólito e o insólito em Adriano Botelho


A narrativa africana de língua portuguesa.

Por Jurema Oliveira*



Assim como o camponês aprende a trabalhar a terra, o poeta aprende a trabalhar com a palavra, aprende a não dizer demais e a não dizer de menos, aprende a sugerir. A poesia não deve fazer mais que sugerir; ela é um compromisso entre a palavra e o silêncio, não o silêncio de quem não tem nada para dizer, mas o silêncio que é o sumo de muita coisa. Então o poeta traduz. Ele é uma boca, e deve ser a boca daqueles que não têm boca (BARBEITOS, 2004, p.8).


De repente do riso fez-se o pranto


Silencioso e branco como a bruma


E das bocas unidas fez-se espuma


E das mãos espalmadas fez-se o espanto.


De repente da calma fez-se o vento


Que dos olhos desfaz a última chama


E da paixão fez-se o pressentimento


E do momento imóvel fez-se o drama.


De repente, não mais que de repente


Fez-se de triste o que se fez amante


E de sozinho o que se fez contente.


Fez-se do amigo próximo o distante


Fez-se da vida uma aventura errante


De repente, não mais que de repente.


(VINICIUS, 2001, p.41)


O presente trabalho tem por objetivo ler criticamente o processo de construção poética de Adriano Botelho de Vasconcelos, autor de Voz da terra (1983), Vidas de sonhar (1975), Células de ilusão armada (1983), Anamnese (1984), Emoções (1988), Abismos de silêncio (1992), Tábua, Grande Prêmio Sonangol de Literatura (2003), Luanary (2007) e organizador de diversas coletâneas de conto e de poesia. Cabe ressaltar, no entanto, que apesar do destaque dado aqui ao projeto estético de Adriano Botelho de Vasconcelos, o caminho trilhado por diversos poetas e romancistas africanos de língua portuguesa é marcado por imagens insólitas oriundas de experiências violentas durante a colonização e pós-independência, no processo de consolidação do Estado / Nação.


A força da narrativa e da poesia africana de língua portuguesa está em linhas gerais envolta num universo repleto de elementos retratadores do substrato violência oriunda dos fenômenos sociais e políticos. Esta marca ora se apresenta de forma sutil, ora de forma explosiva, ora mítica em conflito decorrente do descompasso dos valores da tradição, transformados abruptamente durante os anos de colonização e guerra civil.





Autores como: Boaventura Cardoso, João Melo, Arlindo Barbeitos, Isaquiel Cori (Angola); Mia Couto, Paulina Chiziane, Ba Ka Khosa, João Paulo Borges Coelho (Moçambique); Abdulai Sila (Guiné Bissau); Dina Salústio, Vera Duarte (Cabo Verde); entre outros exploram em sua poesia ou romances o duplo sólito / insólito na busca pelo som que possa perpetuar e dar forma e movimento a idéia de liberdade, que não nasce da pedra, mas das ações humanas.

O suporte teórico usado aqui foi a visão acerca da violência pensada por Hannah Arendt em Sobre a violência e o ensaio sobre a imaginação da matéria de Gaston Bachelard. Sobre a violência representa um repensar o tema violência, tão recorrente no século XX, que presenciou conflitos como: a rebelião estudantil de 1968, a guerra do Vietnã e, no âmbito do debate / discussão, a violência apontada pela nova esquerda como uma forma de resistência à opressão, em especial no processo de descolonização dos países africanos de língua portuguesa. O fenômeno violência nasce do desejo de dominação de um homem sobre todos os outros homens, mas de acordo com Hannah Arendt a violência destrói o poder, não o cria (ARENDT, 2001, p.8).
 O discurso poético de Vasconcelos repousa ora na imaginação material, ora nos substratos da violência. As vozes representadas na poesia deste escritor guardam as marcas insólitas provocadas pelas ações violentas desmedidas. Esta prática independe de números, mas quando ela encontra respaldo no conjunto, no coletivo, torna-se mais perigosa. Sendo assim, tanto nas práticas militares quanto nas revolucionárias a idéia de individualidade desaparece e dá lugar a uma espécie de coerência grupal, um sentimento intenso de união, de vínculo aos princípios básicos da violência pela violência, que encontra motivação no ódio profundo contra os seus opositores, mas também contra os seus pares.

A violência, um instrumento por natureza, “é racional à medida que é eficaz em alcançar o fim que deve justificá-la”(ARENDT, 2001, p.57). O uso desta estratégia pode reformular o sistema vigente, mas não significa uma revolução ampla e muitas vezes serve para desintegrar, desfazer os elos unificadores das práticas sociais e políticas, chegando a atingir a barbárie, o caos total, abrindo no seio da sociedade um “abismo de silêncio”.

Desta forma, a violência neutraliza toda e qualquer possibilidade de os homens se organizarem e viverem em harmonia e conseqüentemente abre espaço para o luto visível nas imagens refletidas num espelho d’água embaçado.

Diante disso, pode-se dizer que a escrita poética reinterpreta com imagens díspares, mas também reflexivas as práticas e os efeitos das ações violentas. A escrita literária permite o distanciamento da vida cotidiana, a suspensão dos acontecimentos. Ela põe em movimento outro sentido, desloca as falas de seu lugar habitual, dando nova roupagem à idéia de apagamento, de censura promovida pelo discurso oficial e abre espaço a circulação da heterogeneidade identitária e discursiva.

As forças imagéticas da mente trilham dois caminhos distintos. Um caminho encontra sua pulsão no novo, na surpresa, no admirável, enquanto que o outro caminho tem sua sustentação escavando a cavidade do ser para explicar aquilo que é mutável e imutável, interior e exterior da imagem guardada nos lugares mais remotos da memória:

Abra-se a cortina de coisas passadas e sem o artifício de nenhum segredo sem essa falta de lugar para a terra do nosso panfleto reclamando imagens de gaivotas recolham-se nossos bens antigos nos estuários subterrâneos onde deságuam os veios da nossa memória onde tudo se vive sem se descobrir a solidão (VASCONCELOS, 1996, p.15).

A imagem da causa formal/sentimental motivada pelos desejos do coração opõe-se a uma outra oriunda da causa material. Esta imagem material deve ser selecionada, separada das recordações recentes, pois ela tem um peso, uma consistência para alimentar o devaneio criador e se distinguir do fato superficial, das motivações do coração que impulsionam a busca pela palavra ideal na construção do discurso poético. As energias diversas provenientes da causa formal e da causa material estão intrinsecamente ligadas, logo separá-las completamente é quase impossível: O devaneio mais móvel, mais metamorfoseante, mais totalmente entregue às formas, guarda ainda assim um lastro, uma densidade, uma lentidão, uma germinação. Em compensação, toda obra poética que mergulha muito profundamente no germe do ser para encontrar a sólida constância e a bela monotonia da matéria, toda obra poética que adquire suas forças na ação vigilante de uma causa substancial deve, mesmo assim, florescer, adornar-se. Deve acolher, para a primeira sedução do leitor, as exuberâncias da beleza formal (BACHELARD, 1997, p.2).
O sujeito de criação precisa ter um domínio preciso da palavra, o uso conciso dos termos e concretude para expressar os mais profundos sentimentos recompondo, assim, o cenário material de um tempo em que “o silêncio é um mar perdido na boca dos peixes”(VASCVONCELOS, 1996, p.22).

A obra poética que mergulha na cavidade do ser pode não produzir as flores da leveza, mas funda um novo referencial imagético. Desta matéria floresce flores negras, com o peso e as cores escuras que lhe são peculiares. As imagens impactantes produzem no leitor encanto e desencanto, alegria e sofrimento, leveza e densidade. Por mais que se queiram separar as forças imagéticas produzidas pela mente, o campo poético se encarrega de unir causa formal e causa material. A motivação do sujeito de enunciação advém geralmente da necessidade de expor sentimentos submersos na memória:

A morte pode com salivas de silêncio apagar o nome das coisas, só a ausência aniquila o sangue até as velhas atarem uma canção nos terços dos destinos. O meu nome é tinteiro derramado no cimento da madrugada. Vejo tombar a guitarra dos meus sonhos e o nome das coisas, como uma cor funda de esquecimento que desfaz em pó as gaivotas da existência, com uma velocidade que só deixa o poder das mães serenar a aflição do futuro, nenhuma palavra memoriza imagens, tudo se apaga como um sino que recebe o vazio mais fundo da música (VASCONCELOS, 1996, p.22).
A valorização da matéria se dá em dois planos: no plano mais profundo e pelo impulso. O primeiro exige do poeta um trabalho no cerne da imagem evocada, enquanto o segundo resulta das sensações sensíveis provenientes das emoções: “No sentido do aprofundamento, ela aparece como insondável como um mistério. No sentido do impulso, surge como uma força inexaurível, como um milagre”(BACHELARD, 1997, p.2). Desta forma, lembrar significa recuperar as experiências individuais e coletivas. A matéria lembrada, oriunda da imagem profunda, precisa ser trabalhada para expressar ao leitor toda sua substância ao passo que a outra é resultante das imagens poéticas operadas para dar um colorido, uma leveza aquela resgatada do interior do ser.
Vasconcelos busca seu devaneio criador numa matéria líquida, a água solidificada na imaginação profunda, com regras próprias, específicas. O poeta procura entender o descompasso do universo material a partir dos princípios, da formação do mundo visível e para corporificar esta idéia mergulha no interior da matéria primordial, depreendendo, assim, na linguagem poética o destino dos homens metamorfoseado numa água que se esvai e deságua pelos veios da memória:
Esse choro que desde há muito tocava as pálpebras: o dia que a morte destruíra, notícias de invasões, doenças e algemas que apodreceram o sangue... tudo visto por dentro num desequilíbrio de anseios. Batem à porta. Nenhum vinho de palmeira manteve o cemitério debaixo dos panos de imbondeiro. Os caixões incham diante da porta, há uma ferida nos dedos: o medo. È à porta de nossas casas que os dias saem do sítio dos epitáfios e o vinho de palmeira deitado por nossas mãos arranja o sono a meio da primavera. Os nomes são um lugar que a morte dominou por dentro da dança erguendo-os em pedra. Esse choro que desde há muito tocava as pálpebras (VASCONCELOS, 1996, p.28).
De acordo com Bachelard “toda água viva é uma água que está a ponto de morrer”(BACHELARD, 1997, p.49). Esta matéria viva tem como destino a perda do brilho, o entorpecimento e conseqüentemente o apagamento da existência, sendo assim, a imaginação da água profunda se define como a absorção do sofrimento, temática explorada por Vasconcelos em sua poética.
Logo, detectar o caminho, a construção do sólito e do insólito na obra deste autor é também verificar os contornos imagéticos da violência geradores da ausência de vida e produtores da estética proveniente do devaneio da morte. As ações violentas acabam por fundar no âmago de uma água clara as marcas sombrias, instauradoras de diversas figuras e fúnebres murmúrios, registrados na folha de papel:

Ah! Se tudo pudesse ser recomeçado no mesmo barro que fez toda a tua infância e se pudesse ouvir o murmúrio das mães que são quem mais sentem nos olhos os sinais dos destinos que por vezes ganham forma de esquife numa simples chávena de café. E vamos deixando mais desconfianças e ciladas para que não se ame os irmãos que estiveram sentados à mesa do mesmo soba. Não podemos comparar as realidades cada vez mais tudo parece um ensaio e não se pode saber se o que se diz faz parte de um belo engano. Não é fácil preferir o interior de nós mesmos. Os espelhos ocupam os espaços e toda a figura já foi um avesso ou o mais perfeito disfarce. Faltou-nos um pincel para deixar os sinais nas paredes como fizeram os apóstolos de todas as tragédias. Não se pode virar pelo contentamento uma página sem que lhe acompanhe em vergonha o sangue e uma pressa em querer que a amnésia solte a piedade. Pelo coração se pode perdoar assim como no pasto no Humby quem mais envelhece são as cabras que comeram as pedras e puderam no lugar da luz e da sua higiene levar os homens para a calçada em madeira antiga que fizeram a nave dos mares (VASCONCELOS, 2004, p.48).

Pensar os processos variáveis, móveis, distintos que envolvem a imaginação da matéria implica ler as representações simbólicas que consolidam o devaneio criador. Vasconcelos encontra a unidade imaginada nas experiências de um sujeito poético que preenche o vazio deixado pela violência e violação dos direitos humanos num tempo de utopias sonhadas.

Este vazio são os sinais refletidos num espelho que não condiz com a teoria do espelhamento social de organização para garantir o equilíbrio da vida comunitária. Segundo Boaventura de Sousa Santos, “são os espelhos que, ao criar sistemas e práticas de semelhança, correspondência e identidade, asseguram a vida em sociedade”(SANTOS, 2002, p.47-8).

Desta forma, recorrendo à força da narração em discurso direto Vasconcelos atualiza o episódio, fazendo emergir da situação a personagem, tornando-a viva para o ouvinte, à maneira de uma cena teatral, em que o sujeito poético desempenha muitas vezes a função de indicador das falas. Estas, na reprodução direta, ganham naturalidade e vivacidade, enriquecidas por elementos lingüísticos tais como exclamações, interrogações, interjeições, vocativos e imperativos, características típicas da oralidade. O universo estético do autor angolano se assemelha ao do escritor brasileiro João Cabral de Melo Neto, ambos valorizam a estrutura poético-narrativa, recurso próprio do romance.

As vozes evocadas sucumbiram e só pela imaginação se materializam. Sendo assim, o eu poético nos apresenta seus personagens:

Nas bandejas de prata vejo mulheres que seguram as terrinas de xaropes feitos de muitas ervas que cresceram na mão do Diabo. O vinho

– apesar da intensa beleza do cálice –

conheço-o dividido porque os mortos que não foram enterrados não querem ser esquecidos e através do seu néctar deixam âncoras nas mazelas da sanzala. Podes tirar-me através do batuque a tarde como se desfaz um bordado, pois é nessa altura que cuido de desfazer-me das desilusões quando o céu não serve para aumentar a imortalidade. Oh, amor!... Tombaram os homens primeiro que os sonhos como se tivéssemos como proveito uma série de desgraças que não podem fazer uma desculpa, mas só os sonhos que partem da lucidez podem encontrar um novo barro que aceite as mãos de um Deus mais perto de nós (VASCONCELOS, 2005, p.44).

Resgatando aqui a visão de Bachelard acerca das águas densas, pode-se dizer que são essas águas espessas, sólidas e profundas a substância base da criação deste poeta. O destino das águas é escurecer, tornar-se pesada, mas é dessa água turva, inerte, imagem recorrente na poesia deste autor, que se percebe os movimentos dos sonhadores:

As mães levantam as fotos dos filhos e o dia treme perto do mais longo instante e o horizonte que sempre fez os sonhadores e os amantes fica coberto de camisas com vestígios de vida. É o requinte da ilusão que faz o enlace sobre ti de duas gaivotas. Outra foto com o Aires ocupa o que mais se dispõe com a infância porque todo o gesto passa pela identidade do que sempre se perde e a aurora é uma trave sobre o horizonte que se deixa enganar por quatro paredes: “Oh, rei grande, vens devolver os nossos filhos sem que em habilidade todo o cemitério nos faça permanecer sentadas nos passeios dos manicômios?”. “Oh, pobres mães, até parece que estais muito perto do horizonte, só aí a vida se faz num barco veloz e forte e parece uma nave habitada. A sua trajectória é fixa como um leão dispara a sua energia numa só impala que parece embrulhada numa folha de prata que parece o brilho mais forte do dia. Levantam poeiras em caracol e deixas a minha ira mais viva do que a força das vossas dores que não entendem como numa mesa se faz o jogo”. (VASCONCELOS, 2007, p.48).

O sujeito poético evoca as lembranças submersas na memória para fazer circular as experiências de toda uma coletividade envolta num “abismo de silêncio”. O fio condutor da poesia de Vasconcelos se consolida com base na imaginação das “águas dormentes” que revigoram as imagens substanciais, geradoras do alimento da imaginação no abafamento da existência imóvel como a dos pássaros aleijados:

da água nasce a língua da tribo, espelho claro de música libertando a imagem sob calcanhares que mantêm aleijados os pássaros. Há um som de flauta que faz as mulheres oferecerem-nos uma esteira e mel. Quando se morre seca sempre um rio apertado no fundo da terra. Eis um sino e um martelo de falsos comícios que lançaram de modo cínico estéreis utopias. (...) Só a liberdade poderá ainda que desapossada revelar a beleza da água como uma lua potente que ensaia o peixe e deixa uma renda à volta do namoro para que nenhum gesto de pêsames aconselhe o valor doentio e pobre do luto que se consolida com molduras de silêncio (VASCONCELOS, 1996, p. 9).
O par morte/vida constitui-se numa dualidade perfeita para se ler a obra de Vasconcelos. A imaginação, faculdade de criar mediante a combinação de idéias, encontra na poética deste escritor o espaço profícuo para alimentar a construção de imagens díspares envolta num cenário preenchido por uma água de tonalidades variadas, capazes de fazer brotar o devaneio criador.

Assim, as experiências insólitas recuperadas na linguagem se materializam na força que emana da palavra. Logo, “as águas das turvas errâncias”, matéria privilegiada na obra deste autor, constitui-se “substância-mãe” na busca pelo som capaz de calar a dor e valorizar a vida:

há uma palavra que temos que libertar deixar que seja um slogan de luz, que obrigue os jornais a incluí-la na primeira página uma palavra que saiba das cadeias das nossas frustrações, uma palavra que ao ser lida desperte uma música capaz de acalmar o homem.

Não é uma palavra guardada nas pondas das bessanganas, envelhecidas nos oratórios que amareleceram de dúvidas o desejo dos homens é uma palavra amplificada de luz capaz de impedir as miopias que ensaiaram os tropeços da manhã. Essa palavra nunca foi lida no exílio das nossas angústias, nem nos casamentos negados de vinho que aceleram a rumba da alegria e por mais incrível que pareça nunca foi poder (VASCONCELOS, 1996, p.10).

Diante disso, o eu poético convoca a coletividade para uma ação sólita: “Reúnam os homens para resolverem a unidade da tribo porque se as águas se apartam em turvas errâncias veremos germinar raízes de pedra e áscuas nas praças triunfo da cinza anulando a hidrografia dos mitos” (VASCONCELOS, 1996, p.9).
Esta reunião, no entanto, somente é possível no plano imaginário, pois todos os personagens convocados desapareceram num “abismo de silêncio”. Se “o conto da água é o conto humano de uma água que morre”(BACHELARD,1997, p.49), é desta água morta que Vasconcelos retira a matéria de sua criação poética. Num processo inovador, ele constrói o cenário capaz de unir o sólito e o insólito, a vida e a morte, pois:

Lá fora o mundo é igual a uma África que vem com os seus heróis que sabem que o ouro limpa tudo, mais do que a água que escorre pelo chão da casa mortuária: “É uma água pesada no seu longo percurso mas que leva em boa guarda e aleluia a vida para tornar mais pura a terra” (VASCONCELOS, 2005, p.136).

As experiências passadas mantêm-se retidas na memória e elas podem ser recuperadas no presente por meio da linguagem. O corpo guarda dos tipos de vivências: uma ligada à memória-hábito que faz parte de nosso adestramento cultural, a outra se define como imagem-lembrança. A memória-hábito constitui-se num conjunto de conhecimento adquirido pela observação e pela repetição de movimentos ou palavras. Ela se faz necessária à vida comunitária, à socialização. A outra, a imagem-lembrança, ocupa a área profunda da mente e ao ser evocada se corporifica de forma única, irreversível.

A poesia de Vasconcelos nasce dessa experiência latente nas zonas as mais profundas do psiquismo. Essas impressões se assemelham a um palimpsesto, material antigo, raspado várias vezes, dando o tom, o colorido às representações, às manifestações das essências escondidas nas profundezas das substâncias da matéria:

O rei não pode esperar da noite toda a ousadia da esperança como se, por este lado das surpresas e de quantos mais terços se endireita a aurora, lhe caiba outra luz. Todo o intervalo serviu para vermos se ainda poderíamos acertar com azagaias o teu coração. E mataste o teu melhor irmão para que toda a noite passasse para dentro de nós. As lavras de mandioca aumentaram a safra na mesma proporção que os mortos. Ainda tentaram escolher o melhor filho para o acompanhar, prepararam cinzas e ventos. Os mortos de outras guerras mais antigas estavam tontos nas poças de vinho (VASCONCELOS, 2004, p.98).
Os acontecimentos submersos na matéria adormecida pelo sono profundo são o substrato, o que serve de suporte para uma outra existência, o sonho/poético. Este transforma os sinais contemplativos advindos do sono em elementos sustentadores do projeto literário de Vasconcelos.

O sono profundo oferece um amálgama de sentimentos, visões, lembranças constituidoras do discurso crítico e irônico do escritor. Como se pode constatar no trecho retirado do poema: “Um reino apesar dos sabres mais afiados”:

“Um reino apesar dos sabres mais afiados guarda-se melhor com o excesso de bondade”,
fez-te lembrar o velho Tiba quando te foi íntimo
 sangue das vítimas na Cadeia de São Paulo.
Só o coração sabe afeiçoar a irmandade porque tens

de saber como tuas mãos, apesar de exímias a medirem

a espessura das pepitas d’oiro, servirão mais se puderem com a ajuda dos joelhos e seu chão de pedras lavar os pés dos doentes
do Sanatório. Ainda que enxugues os seus pés, percorras

sozinho o corredor onde Deus brinca

com o sol e seus curtos lugares, terás de vestir
a batina de sua vida, ouvir como em ti se faz

sem amnésia a identidade dos outros (VASCONCELOS, 2007, p.19).

As imagens do sono despontam na poesia de Vasconcelos como um tipo de predisposição, evocação que redimensionam por via da memória/poética o clima de tempestade, das águas revoltas. Neste sentido, o sono provoca e projeta a criação do escritor para um tempo de sonho desfeito e refeito no espaço literário para acolher “aqueles que não têm boca”.

Desta forma, a busca pela linguagem artística aguça no escritor certas aptidões, certas vocações para o sobrenatural e o invisível, certa percepção do sentido oculto das coisas inertes. Tão bem explicitadas no trecho retirado do poema “Oh, meu rei, o Tiba diverte-te com palavras”:

(...) A morte exibe-se com assepsias de ouro, um soldado chora com o que lhe sobra do coração, está perdido porque oferece o seu horário de pedra que dança com as incertezas que vigiam os dias. “Dois dedos fecham o que a morte gosta de enganar com laços que entortam o sonho numa cova de mármore branco”(VASCONCELOS, 2007, p.37).

O sono, no entanto, com o sentido de inércia não alimenta a poesia, mas somente aquele revigorado, trabalhado, pode alterar o sentido daquilo que só tem sentido no discurso literário. Sendo assim, recupera-se aqui mais uma vez a visão de Arlindo Barbeitos para quem “a poesia só é poesia se sugere, só tem expressão, só tem força, só é arte em forma de palavra, se simultaneamente retém e transcende a palavra”(BARBEITOS, 2004, p.8).

Neste universo de percepções, o discurso de Vasconcelos transforma vozes ausentes, silenciadas pelo sono profundo em figuras que transitam no tempo poético. A materialização por meio da linguagem artística daqueles que desapareceram nas águas turvas e repousam num horizonte longínquo, só se efetiva de fato por meio da voz do poeta. Sendo assim, o escritor empresta sua voz àquelas figuras que precisam metaforicamente se movimentar naquele cenário. Ele reconstrói um tempo de glórias desfeitas.

Diante disso, se o sono é o lado “não iluminado”, submerso na memória de um tempo de violência, o sonho reinterpreta as visões envoltas numa atmosfera em que: “A glória é fria porque só os bobos são parte da sua artimanha por lhes ser fácil imaginarem a morte da ficção que os escritores tentam salvar” (VASCONCELOS, 2007, p.48).

A composição poética constitui-se, assim, no momento inexplicável de um achado, ou porque não dizer, nas horas enormes de uma procura pelas palavras essenciais para a inscrição que só o sonho inspira. A força advinda desta subjetividade chamada sonho envolve o ser criador em um ato íntimo, solitário, que se efetiva sem testemunhas, “porque essa idéia é como o vento só o tem no toque às palmeiras” (VASCONCELOS, 2007, p.50).
Sendo assim, pode-se afirmar que somente o escritor sabe de que é feita esta força repleta de concessões ao fácil, de soluções insatisfatórias, de aceitação resignada do pouco alcançado e de renúncia da sua própria voz para deixar vir à tona a voz que o surpreende em um ato mínimo, rápido e dinâmico. Neste apagamento do sujeito/produtor da poesia, ouve-se a voz descida. O poeta se faz passivo para que na captura do instante preciso não se derrame de todo esse pássaro fluido que é a poesia, pois

“Toda cumplicidade não pode ter a parte

mais íntima no cofre e o que é material só vive

pela troca desigual. (...) A dor cria sempre um poeta

capaz de enganar por cima do espelho

do lago a utopia com as mesmas artes
e metáforas que usas para salvar

o amor e seus orgasmos”. Toda a cidade tem o seu porto

nas portas que ficam abertas depois de à noite

perderes com rascunhos o teu próprio nome: mulheres. “O batom

é forte em cheiro e cor, abres uma janela quando
passa o último soldado com a idéia tirada do postigo

que deixara passar por força da intimidade

o que faz em fogo a dança guerreira, e podes

pedir-lhe algo mais do que o seu peito: ele dir-te-á não
porque quer viver com esse

verso que mais faz descer

a lua em teus

braços” (VASCONCELOS, 2007, p.22).


Nesse contexto, a poesia faz circular os saberes. Desloca do espaço do poder a língua, que regula a história humana, dando-lhe uma nova roupagem, para imprimir os vários sentidos buscados. O poeta trabalha e vislumbra saídas na encenação dos enunciados, livre das amarras do poder regulador que delimitam os atos e as ações do homem na vida diária. Num jogo teatral, os significados se efetivam no desvio, na reordenação do código lingüístico que permite ouvir a língua fora do poder. O discurso literário ultrapassa os obstáculos típicos da língua, como código regulador do discurso "coerente" que sustenta o corpo social, e funciona como o logro, o lugar que dialoga com o dentro e o fora; com o interior e o exterior da linguagem literária, quando o discurso poético tem caráter testemunhal. Como bem define o eu-poético do trecho a seguir:

“Estou no ringue para indicar o que posso segurar


através dos meus ranhos e cobrar do mundo”.


Bandeiras com pensadores em ouro e até um despacho


do rei preparam essa luta onde cada um dos contendores


buscará a sua verdade sem que ninguém


saiba porque nos querem mais frágeis e infiéis. Um abismo


vence sempre o alcance dos olhos. Existe


uma neblina muito entrançada que faz a aurora


do Uíge e os anjos cheiram a bagos de café: são espelhos


cujo valor de distância só Deus sabe manter


mesmo quando o céu é um azul intenso


e mais próximo dos mendigos. “Trago


um juiz para a luta pois preciso de abrir a sua bíblia na página mais amarrotada e suja com óleo de palma e funge (VASCONCELOS, 2007, p.13).
O contexto histórico-social, destoante e desconcertante no plano real, torna-se objeto singular no plano poético e precisa ser redimensionado via representação na poesia, espaço significante e de jogos de sentidos, para o funcionamento da discursividade de vozes não autorizadas e marginalizadas na sociedade. Diante de tal fato, a voz autorizada precisa apresentar e representar com toda a força que emana das palavras a vida, mas, no dizer de João Cabral Melo Neto, "é difícil defendê-la só com palavras, ainda mais quando é essa que se vê Severina"(MELO, 1980, p.122).

A presentificação dos fatos se caracteriza como o detalhe específico da arte literária. Os elementos recuperados do contexto são modelados, transformados, ou reforçados no âmbito poético. A arte tece a rede dos significados que podem emanar da superfície ou da profundidade do contexto, ou melhor, do “sonho que acalentámos/ Durante meses seguidos./E agora/ -Mariposa vermelha-/Só ficou a reluzir/ A pequenina centelha/ Duma ilusão a fugir”(SANTOS, 2004, p28-9).


Trilhando esta linha de fuga, o sujeito poético pode ouvir o “belo conselho” que não explica, mas ameniza o sentido do sono profundo. Sendo assim, privilegiando o dialogismo/poético, o escritor convida o leitor a ouvir essas vozes:
"Não, meu rei grande, esse jogo só o vences


se usares o silêncio que faz pela corrosão a frágil


verdade que pode em álcool constelar


pelo delírio e impaciência o ânimo diante das derrotas


que abriram a cirrose que confronta cada vogal


da tua última estrofe: Uma maleita de desilusão


só passa com um maior panfleto de oferta,


mas precisarias de uma nova guerra


e uma prenda de verdugos: um paredão. Levantas finas


lâminas de mármore e uma lança com pontas de cólera


para que os cavalos possam descansar nos novos terreiros, mas as cinzas que guardo como o teu melhor cabo pesam em mim


com igual pilar de escuridão da tua morte”, “Ah, belo conselho: sabes que o meu tempo oferece a eternidade e trono a um herdeiro que não conheces,


queima-se a utopia com um pouco de vinho, depois


a festa só serve para que mais homens da sanzala


digam que quem te sucedera nunca


nos dera o que mais desafiamos com a ilusão: Vida” (VASCONCELOS, 2007, p.50).

Diante disso, constata-se que o poema citado anteriormente é o eco de experiências. É a maneira encontrada pelo poeta para revelar aquilo que a linguagem cotidiana não consegue revelar. A linguagem poética traduz o intraduzível. Ela é como um resíduo e neste caso é exato empregar a expressão “transmissora” de sensações antigas para revigorar um tempo de novas aventuras.

O passado apresenta várias versões, ele está imbricado entre a memória e a história e encontra na linguagem artística o suporte decisivo que “reduz, unifica e aproxima no mesmo espaço histórico e cultural a imagem do sonho, a imagem lembrada e as imagens da vigília atual”(BOSI, 1995, p.56). A memória traz à tona não só as percepções passadas, mas as sensações do presente que confluem e se complementam no instante da criação como força subjetiva e produtora dos símbolos profundos e ativos para compor o universo estético do escritor.

A vigília atual se processa no discurso poético como forma de interpretação do passado. Esta atitude explorada na escrita, além de fazer circular as várias falas, abre caminho para a diferenciação, para o resgate dos materiais simbólicos à disposição do autor que busca encenar na poesia um conjunto de representações presentes na consciência do sujeito poético.

Metaforizando aspectos da memória histórica, Vasconcelos aproxima o ontem e o hoje em linguagem poética para intercambiar experiências comunicáveis tão valorizadas na tradição oral de sua terra. Na produção do poeta angolano, os movimentos impostos ao sujeito poético advêm da sua habilidade para depreender gestos, hábitos, rituais e ritmos próprios da técnica da poesia moderna de modo que possa socializar com o leitor uma nova forma de visualizar as experiências que amarram a história do indivíduo à história da coletividade. Logo:

“Como é que um poeta deixou abandonados


os seus versos na cela solitária da cadeia de São Paulo,


paredes pintadas de preto com teias


que desfazem a luz, lugar


onde mais entendi a loucura dos políticos


apesar de dizerem em verso que são os vôos


das gaivotas que criam a presença


de Deus?”. Um verso deveria ser a nossa segunda


pele no meio de uma ventosa que menos envelheceria


a palavra diante das idades


que já não chegam para preparar as respostas


que nos faltam para entendermos o caos


que ficou como marca


das utopias (VASCONCELOS, 2007, p.125).
Valorizando aspectos como a estrutura poético-narrativa, a exploração valorativa das imagens submersas na memória e a estrutura da palavra, num processo de restauração e invenção, o poeta dá o colorido necessário ao texto. Com a recriação frasal por meio de realces materiais, inversões da sintaxe oracional, subversão do sistema de pontuação − como o uso de aspas para realçar aspectos factuais − e a disposição do texto na página, Vasconcelos instaura um estilo próprio de escrever e inscrever poeticamente a memória e a história. Pois:

Todos os rosários que passaram pelos meus dedos


e lhe deram calos não chegam para completar


essa idéia que dizes viver em cada minha dor. “E o sol


está aí como se maior fosse o muro


que nos afasta do mundo e esse nível de barreira


é o que mais prepara a perda que faz doer


o âmago”. O quadro na sala de estar não é só o erguer


da nossa irmandade, uma folha caída e com o vento


como seu bordado pega-se em tudo que abre


uma janela diante do mar para refazer o percurso


dos apóstolos no que o mundo de forma inocente


se abrira em incógnitas: “O mar imagina-se na mala


fechada oferecida por um cigano e o exílio levanta


o nome dos mortos que fazem reconhecer a pátria


na mão de pedintes”. Todos os rosários


penduram o silêncio no que já não


podes aplaudir (VASCONCELOS, 2007, p.99).
Segundo Evando Nascimento, “a ambivalência fundamental entre pulsão de vida e pulsão de morte, antes de ser uma dicotomia entre duas plenitudes, se revela como a própria condição para a existência de qualquer sistema”(NASCIMENTO, 2001, p.172), pois, quando um sucumbe, o outro, reprimido da história, ainda que poeticamente, surge para impulsionar por outra via o curso da existência. Diante disso, pode-se dizer que Vasconcelos precisa violar e violentar todas as regras – gramaticais, os fatos históricos, etc. – para dar vida a um discurso entrecortado, camuflado, silenciado, mas revelador das imagens cristalizadas no “espelho” da memória, repleta de personagens históricos. Sendo assim,

“Um dente cariado de um poeta não pode alterar


a utopia para a sua podridão”, “Sim, meu filho,


as palavras podem passar pela cárie de todos os dentes


e não perderem a beleza e nem mesmo as moscas do musseque


perseguirão as suas vogais. Todas as palavras deveriam


conhecer o seu sinaleiro como seu alto orientador através


de uma bússola que conhece como os egos


fazem as trocas de identidades porque o mundo


é uma montra onde os actores vencem


quando fingem não ser o que se advinha através


dos búzios que as velhas ensinaram


a dominar com duas pontas de luar”. Podes ver


essa lição quando Viriato da Cruz


é levado pelos beijos de um casal sentado nos bancos


partidos da marginal e o Banco Nacional com todo o cofre


do país não faz parte desse idílio por lhes ser cara


a pureza: “Amor, dobra o lado do sim”. E estão diante do mar


e seus barcos iluminados perdem o sentido


das viagens, barcos sem âncoras: “Já não se trazem


em vaidade as palavras dos exílios,


os guerrilheiros e Álvaro Cunhal cedo perderam os antigos


aplausos e o umbigo marca o palácio, mas, meu amor,


eu levo-te através dos bibes da lua que nos vestem


a alma com novas portas e palavras


cada vez mais viradas


para dentro


de nós”(VASCONCELOS, 2007, p.126).
Numa explosão dos sentidos paradigmáticos da poesia, Vasconcelos valoriza o estilo narrativo para fazer falar o individual e o coletivo, como bem define o poeta João Cabral de Melo Neto: “Somos muitos Severinos / iguais em tudo na vida e na sina”(MELO, 1980, p.120). Sina esta, mantenedora do sonho que realimenta uma imagem fugidia de uma utopia desejada, mas dispersa em muitas aquarelas como se vê em Luanary.
Neste sentido, entretecendo um ritmo gerador de cumplicidades e oposições, o poeta leva o leitor a apreciar o entrecruzar do canto polifônico, os traços que remontam na cadeia do tempo poético aos sinais de uma universalidade. A memória é ilimitada e encontra na criação poética os recursos lingüísticos necessários para fazer nascer - da musicalidade dos versos, da repetição das palavras que compõem o mosaico - a infinita medida do canto.
 invenção poética dá o tom da obra deste autor que dialoga com seus compatriotas e com outros de além-mar, como bem define Elisalva Madruga em seu artigo "Ressonâncias drummondianas na poética africana"(MADRUGA, 2003, p.15). Segundo ela, a voz de Drummond, carregada de sentimento de mundo, ecoa em outras vozes poéticas africanas, formando com elas um coro cuja tonalidade é orientada pelo diapasão da dor.

O discurso poético de Vasconcelos se constrói num processo dialógico. A poesia faz circular os saberes de forma intertextual e cria novas redes de cumplicidades. O trabalho artístico busca respostas para perguntas provenientes das inquietações humanas. A função poética da linguagem está fixada na mensagem e coloca em segundo plano o referente por meio de recursos forma/conteúdo, tais como associações de sons e imagens na língua “alterada” e transformada por recursos estéticos e semânticos, como se depreende no poema a seguir:


<< As gaivotas já foram crianças abandonadas


ainda no berço e podias chamá-las de José. Os nomes


não podem fazer o registo da utopia


porque até o sol apesar da sua altura nunca


oferece o céu para que mais loucos


fiquem assustados à porta do teu palácio. Oh, rei,


tiraste-me o pote de mel e só precisaste


de um café sem açúcar! O movimento da colher


empurrava a sala oval, terrinas de oiro


vazias ficaram cheias dos meus


objectos: anéis, colares... chaves de um BMW, em rotação


diferente, como abrupta queda de mim mesmo. Era


só veres como iluminada estava a foto


do tio que eu abandonara, as minhas


lágrimas nada podiam fazer. (VASCONCELOS, 2007, p.25).

Seguindo a linha de fuga promovida pelo dialogismo, as imagens expostas no poema acima nos remetem a Carlos Drummond de Andrade e a seu poema “E, agora José?”. O José do poeta brasileiro é um operário que, assim como o José do poeta angolano, metaforiza sua contribuição na construção dos palácios onde, concluída a obra, já não poderá entrar. E se “os nomes não podem fazer o registo da utopia” (VASCONCELOS, 2007, p.25), os poetas podem construir a utopia com imagens que impulsionam a vida, mesmo depois de os “mais fortes da sanzala [terem] abandonado o meu quintal” (VASCONCELOS, 2007, p.25) e o José drummondiano ainda pergunta “para onde?”.
Nas obras de Vasconcelos, as versões do passado são reatualizadas com imagens elaboradas por um procedimento produtor de opiniões que articulam experiências só evidenciadas no presente com a reconstrução factual. Reconstrução esta, capaz de promover o questionamento de vozes individualizadas e coletivas que compõem o mosaico poético e trazem à tona as águas revoltas do passado para reinterpretá-las no espaço literário onde ocorrem reflexões acerca do “silêncio [que] fez a noite ser mais longa pelo rabo de uma cobra que toca os tambores que ainda guardam as lágrimas dos kombas” (VASCONCELOS, 2007, p.13).
As imagens densas da história, sob o prisma da imaginação criadora, recebem um colorido especial, logo, as águas entorpecidas, pesadas - símbolo da violência que define o curso da vida - são transformadas em metáforas de leveza repletas de “balões feitos com leves espelhos de água que deixam o mundo mais bonito” (VASCONCELOS, 2007, p.132).

Envolto numa aura de rememoração, a poesia de Vasconcelos transita entre a tradição e a modernidade, com um discurso entrecortado por traços que ligam o sujeito poético ao discurso do contador de histórias. Vasconcelos constrói um universo artístico que valoriza a descoberta de novos processos que atualizem no imaginário os valores da tradição em consonância com a atualidade. E já que as transformações associadas à modernidade modificaram as relações do indivíduo com suas práticas discursivas, o sujeito poético afirma sua forma de estar no mundo individualizando-se e diz:

[...] lá longe, onde só Deus pode escutar, as minhas palavras


perdiam cada vez mais a matiz


da minha identidade e os outros loucos


mais antigos que se suicidavam aproveitando


a vertigem a saldo. Falo de Lameira, Viriato, Aristóteles


e Zaratustra, Luther King, Kwame Nkrumah (VASCONCELOS, 2007, p.144).


Nessa dinâmica discursiva, Vasconcelos traz à cena figuras históricas e a idéia da perda identitária para promover no cenário poético a crítica a uma época em que


[...] «Oh, Pátria, queríamos


ser os únicos untados com azeite das lamparinas


que protegessem a nossa sorte, aqueles que passassem


pela dor de Njinga como se fosse bálsamo


e trigo para toda a epopéia, mas não podemos deixar de sofrer


com os irmãos que pior dor, sina e morte receberam


de seus camaradas e compadres (VASCONCELOS, 2007, p.20).


A contemporaneidade literária africana de língua portuguesa envolta num misto de fragmentação e ruptura - características das mudanças processadas nas sociedades que buscam uma nova ordem social, política e econômica -, "parece roubar à poesia a possibilidade da comunhão, interditando-lhe aquela velha faculdade de promover a aliança entre o homem e a natureza, entre a arte e a sociedade, entre os homens e os outros homens"(CHAVES, 2005, p.63).

Neste sentido, o retorno à tradição, ao diálogo com poetas locais e de outras nacionalidades, impõe-se ao escritor que não se quer cúmplice da destruição, mas inventor de uma nova poética capaz de formular as respostas precisas para expressar a crença de que "o poeta pode evitar o caos quando consegue assegurar à palavra o direito e o poder de continuar fundando utopias"(CHAVES,2005, p.63).

Com um dinamismo típico de um contador de histórias, Vasconcelos estabelece um pacto com a tradição para manter viva a chama que alimenta a existência de toda uma coletividade. Sua poesia revigora o ritual de transmissão de conhecimento e irriga com as experiências individuais e coletivas a cadeia primordial da arte de narrar, que em sua obra vai pouco a pouco adquirindo um status mágico, ritualístico − um ato de iniciação ao universo da angolanidade. Podemos dizer, então, que Vasconcelos atinge a dimensão histórica do narrador/contador de histórias. Essa dimensão corporifica um sistema de valores estéticos capaz de recuperar o espaço matricial da tradição em vários níveis para fazer circular num jogo intertextual as marcas peculiares à memória e à história. Com imagens sensoriais que transitam entre a poesia e a prosa, o autor representa, com toda a força que emana das palavras, as vozes silenciadas.

Conclui-se que o sujeito de enunciação num jogo imagético coloca o leitor diante de uma explosão de sentidos da temática sólito versus insólito. Esta pulsão criadora composta por imagens duplicadas, múltiplas, oriundas de aspectos do plano poético, histórico e mítico, redimensiona a idéia de água pesada, pois como bem define Vinicius de Moraes no “Soneto de separação”, texto de abertura deste artigo, do momento imóvel fez-se o drama.

Referências

1- ANDRADE, Carlos Drummond de. José e outros. 5. ed. Rio de Janeiro: Record, 1996.


2- BACHELARD, Gaston. A água e os sonhos: ensaio sobre a imaginação da matéria. São Paulo: Martins Fontes, 1997.


3- BARBEITOS, Arlindo. Angola, angolê, angolema. Luanda: Maianga, 2004.


4- BOSI, Ecléa. Memória e sociedade: lembranças de velhos. 4. ed. São Paulo: Companhia das Letras, 1995.


5- CHAVES, Rita de Cássia Natal. Angola e Moçambique: experiência colonial e territórios literários. São Paulo: Ateliê, 2005.


6- MADRUGA, Elisalva. “Ressonâncias drummndianas na poética africana”. In: Contatos e ressonâncias: literaturas africanas de língua portuguesa. Belo Horizonte: PUC Minas, 2003.


7- MELO Neto, João Cabral de. "Morte e Vida Severina". In: Obras completas. 3. ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 1980.


8- MORAES, Vinicius de. O operário em construção. 2 ed., Lisboa: Dom Quixote, 2001.


9- NASCIMENTO, Evando. Derrida e a literatura: “notas” de literatura e filosofia nos textos da desconstrução. 2.ed. Niterói: EdUFF, 2001.


10- OLIVEIRA, Jurema José de. Violência e violação: uma leitura triangular do autoritarismo em três narrativas contemporâneas luso-afro-brasileiras. Luanda: União dos Escritores Angolanos, 2007.


11- SANTOS, Aires de Almeida; LARA Filho, Ernesto; CRUZ, Viriato da. Obra poética Luanda: Maianga, 2004.


12- VASCONCELOS, Adriano Botelho de. Luanary. Luanda: União dos Escritores Angolanos, 2007.


13- ___.Olímias. Luanda: União dos Escritores Angolanos, 2005.


14- ___.Tábua. Luanda: União dos Escritores Angolanos, 2004.



* Jurema José é Crítica Literária das Literaturas dos PALOPs

Cedido por: http://www.pambazuka.org
Nota:As obras de Adriano Botelho , podem ser adquiridas em: 
http://www.ueangola.com/
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